«... ao dobrar a esquina da Puerta del Angel com a Rua Santa Ana, deu-me o coração um salto. Fermín, como sempre, tivera razão. O destino aguardava-me diante da livraria envergando um vestido de lã cinzenta, sapatos novos e meias de sede, e a estudar o seu reflexo na montra...
- Não sei de que te ris...
- Não me estou a rir. Estou morto de medo, mas é que fico contente por te ver.
- Eu também - disse ela num sorriso a meia haste, nervoso e fugaz.
- Dizes isso como se fosse uma doença...
- É pior que isso. Pensava que, se te voltasse a ver à luz do dia, se calhar, ganhava juízo...
- Não nos podem ver juntos. Assim não, em plena rua.
- E quem é que nos vai ver? A quem é que importa o que façamos?
- As pessoas têm sempre olhos para o que não lhes importa.
...
- Julguei que não vinhas...
- Estás a tremer. É de medo ou de frio?
- Ainda não decidi...
...
- Acho que nada acontece por acaso, sabes? Que, no fundo, as coisas têm o seu plano secreto, embora nós não o entendamos. Como o de teres encontrardo aquele romance de Julian Carax no Cemitério dos Livros Esquecidos, ou o de tu e eu estarmos agora aqui, nesta casa que pertenceu aos Aldaya Tudo faz parte de qualquer coisa que não conseguimos perceber, mas que nos possui.
...
- Não me deixes cair... - murmurou.
O homem mais sábio que alguma vez conheci, Fermín Romero Torres, tinha-me explicado, numa ocasião, que não existe na vida experiência comparável com a da primeira vez que se despe uma mulher. Sábio, como era, não me tinha mentido, mas tão-pouco me contara toda a verdade. Nada me tinha dito daquele estranho tremelique das mãos que convertia cada botão, cada fecho-eclair, em tarefa de titãs. Nada me tinha dito daquele feitiço de pele pálida e trémula, daquele primeiro roçagar de lábios, nem daquela miragem que parecia arder em cada poro da pele. Nada me contara de tudo aquilo porque sabia que o milagre só sucedia uma vez, e que ao suceder, falava um língua de segredos que, mal se desvendavam, fugiam para sempre. Mil vezes quis recuperar aquela primeira tarde no casarão da Avenida Tibidabo com Bea em que o rumor da chuva arrebatou o mundo. Mil vezes quis regressar e perder-me numa recordação da qual apenas consigo recuperar uma imagem roubada ao calor das chamas. Bea, nua e reluzente de chuva, deitada junto ao fogo, aberta num olhar que me perseguiu desde então.
Inclinei-me sobre ela e percorri a pele do seu ventre com a ponta dos dedos. Bea deixou descair as pálpebras, os olhos e sorriu-me, segura e forte.
- Faz-me o que quiseres... - sussurrou.
Tinha dezassete anos e a vida nos lábios ...»