segunda-feira, janeiro 22, 2007

Numa manhã de Março



«Vestia de marfim e trazia o mundo nos olhos. Mal me lembro das palavras do padre, nem dos rostos perdidos de esperança dos convidados que enchiam a igreja naquela manhã de Março. Permanece, apenas, em mim o roçagar dos seus lábios e, ao entreabrir os olhos, o juramento secreto que trazia na pele e que recordaria todos os dias da minha vida.»

Maresia

Sentado na esplanada sentia o calor do sol de Janeiro, que por entre as parcas nuvens, procurava trazer alguma luz e calor. Por entre a maresia, o mar estava ali ao alcance da mão, sentia um cheiro que lhe era familiar. Um perfume. Juntamente com ele, a recordação de um rosto, de um corpo, de uma paixão, de um amor, fugaz, mas intenso, marcante, nunca esquecido, mas já há muito perdido.
Recordava, agora, com um sorriso, sincero e sentido, e com saudade um futuro vivido a dois, que nunca aconteceria.
Suspirou e perdeu-se na imensidão do mar, a recordar momentos que nunca viveriam.

domingo, janeiro 21, 2007

O único defeito das mulheres.

«Em relação ao relacionamento Homem/Mulher, sempre me considerei um privilegiado.
Sempre consegui ver a beleza feminina, mesmo onde, segundo os critérios estéticos vigentes, ela inexistia.
Porque todas as mulheres são lindas. Se não no todo, pelo menos em algum detalhe. É só saber olhar. Todas têm a sua graça.
E embora contaminado pela irreversível herança genética que me faz idolatrar os ícones da futilidade, sempre me apaixonei perdidamente por todas as incautas que se aproximaram de mim. Incautas não por serem ingénuas, mas por acreditarem. Porque todas as mulheres acreditam firmemente na possibilidade do homem ideal.

E esse, é o seu único defeito.
»

sábado, janeiro 20, 2007



«The mind is its own place, and in it self can make a Heaven of Hell, a Hell of Heaven»

[Milton, Paradise Lost, I, 254-55]

segunda-feira, janeiro 15, 2007

A Gente Vai Continuar

Tira a mão do queixo, não penses mais nisso. O que lá vai já deu o que tinha a dar. Quem ganhou, ganhou e usou-se disso, quem perdeu há-de ter mais cartas para dar. E enquanto alguns fazem figura, outros sucumbem à batota.

Chega aonde tu quiseres, mas goza bem a tua rota. Enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar; enquanto houver ventos e mar, a gente não vai parar.

Todos nós pagamos por tudo o que usamos, o sistema é antigo e não poupa ninguém, não somos todos escravos do que precisamos. Reduz as necessidades se queres passar bem, que a dependência é uma besta que dá cabo do desejo, e a liberdade é uma maluca que sabe quanto vale um beijo.

Enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar. Enquanto houver ventos e mar, a gente não vai parar.

Rui Malheiro e Tiago Leitão

domingo, janeiro 14, 2007

Nos meus dezassete anos

«... ao dobrar a esquina da Puerta del Angel com a Rua Santa Ana, deu-me o coração um salto. Fermín, como sempre, tivera razão. O destino aguardava-me diante da livraria envergando um vestido de lã cinzenta, sapatos novos e meias de sede, e a estudar o seu reflexo na montra...

- Não sei de que te ris...
- Não me estou a rir. Estou morto de medo, mas é que fico contente por te ver.
- Eu também - disse ela num sorriso a meia haste, nervoso e fugaz.
- Dizes isso como se fosse uma doença...
- É pior que isso. Pensava que, se te voltasse a ver à luz do dia, se calhar, ganhava juízo...
- Não nos podem ver juntos. Assim não, em plena rua.
- E quem é que nos vai ver? A quem é que importa o que façamos?
- As pessoas têm sempre olhos para o que não lhes importa.

...

- Julguei que não vinhas...
- Estás a tremer. É de medo ou de frio?
- Ainda não decidi...

...

- Acho que nada acontece por acaso, sabes? Que, no fundo, as coisas têm o seu plano secreto, embora nós não o entendamos. Como o de teres encontrardo aquele romance de Julian Carax no Cemitério dos Livros Esquecidos, ou o de tu e eu estarmos agora aqui, nesta casa que pertenceu aos Aldaya Tudo faz parte de qualquer coisa que não conseguimos perceber, mas que nos possui.

...

- Não me deixes cair... - murmurou.

O homem mais sábio que alguma vez conheci, Fermín Romero Torres, tinha-me explicado, numa ocasião, que não existe na vida experiência comparável com a da primeira vez que se despe uma mulher. Sábio, como era, não me tinha mentido, mas tão-pouco me contara toda a verdade. Nada me tinha dito daquele estranho tremelique das mãos que convertia cada botão, cada fecho-eclair, em tarefa de titãs. Nada me tinha dito daquele feitiço de pele pálida e trémula, daquele primeiro roçagar de lábios, nem daquela miragem que parecia arder em cada poro da pele. Nada me contara de tudo aquilo porque sabia que o milagre só sucedia uma vez, e que ao suceder, falava um língua de segredos que, mal se desvendavam, fugiam para sempre. Mil vezes quis recuperar aquela primeira tarde no casarão da Avenida Tibidabo com Bea em que o rumor da chuva arrebatou o mundo. Mil vezes quis regressar e perder-me numa recordação da qual apenas consigo recuperar uma imagem roubada ao calor das chamas. Bea, nua e reluzente de chuva, deitada junto ao fogo, aberta num olhar que me perseguiu desde então.

Inclinei-me sobre ela e percorri a pele do seu ventre com a ponta dos dedos.
Bea deixou descair as pálpebras, os olhos e sorriu-me, segura e forte.

- Faz-me o que quiseres... - sussurrou.

Tinha dezassete anos e a vida nos lábios ...»

terça-feira, janeiro 02, 2007

Saltimbanco louco

Não me ensines os caminhos, quero rasgá-los no meu peito. Quando aprendemos sozinhos parece que há mais direito, a ter inteira a tua alma. A roubar-ta quando não esperas, e abraçar-te no colo sem saberes, como se faz a um amor que se perdera.

Assim andarás comigo quando de ti não souberes, e não te ensino os caminhos para tomares os rumos que quiseres.

Tenho a alma desbastada de um sentimento sem fundo, e sou como um saltimbanco louco que por quase, quase nada se entrega ao mundo.

[Mafalda Veiga]

Meu Deus,

... se nos velas, diz-me: o que é que "nos" separa? Porque é que o sol demora atrás da colina escura?Anda dar luz ao caminho, que assim desespero...

... É como sonhar sozinho...

... como se o mar fosse raso e o céu não tivesse altura.

Sempre no silêncio dá gozo a voz deste chão. Ainda me dói a alma, na dor do corpo e das mãos. Tenho medo deste frio que à noite sinto no peito, como se andassem cavando, como se andassem fechando buracos de solidão.

Eu não sei ...

... O que há depois do horizonte.

Sou um vulto curvado com uma sombra defronte, a ouvir rumores na distância; a sentir dentro um segredo feito de sonhos calados, feito de braços fechados, num poço fundo de medo.

Anda dar luz ao caminho, que já me dói a demora...

... É como sonhar sozinho!...

... Um sonho que nunca vinga, num grito que nunca chora...

[adaptação do poema de de Mafalda Veiga, Grito, retirado daqui]